Vera Lúcia Saleme Colnago
Psicanalista e Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória
A pandemia do Coronavírus tem produzido efeitos avassaladores na vida humana em todo o planeta. São perdas incalculáveis de toda ordem. Na guerra contra um exterminador chamado COVID 19 perderemos diretamente inúmeras vidas, além das perdas indiretas por consequência da grave crise na economia mundial. Contudo, escutando alguns depoimentos de famílias confinadas em suas residências, observamos outros efeitos que merecem reflexão.
Vivemos tempos de economia mundial capitalista em que a busca desenfreada pelo consumo tem produzido consequências nas relações humanas. Há uma linha tênue entre a economia do mercado e a economia psíquica. O imperativo da lógica do mercado é viver sem limites para o consumo; no psiquismo é o viver sem limites nas relações familiares. Pais vivendo o trabalho sem limites, numa busca sem fim para adquirir objetos de consumo. A justificativa se faz com um discurso recorrente: “precisamos dar o melhor para nossos filhos”. O que significa oferecer uma escola de qualidade, uma formação em línguas estrangeiras, aulas extras de atividades culturais e esportivas, etc. Para tal fim, a criação de seus filhos é terceirizada, pois não há tempo para cuidar e brincar com eles. Muito menos para colocar os limites que toda criança necessita. Ficar com os filhos não é o mais importante, pois “o que eles precisam é se preparar para um futuro de sucesso em suas vidas”. O olhar não está mais voltado para o sujeito que está em cada criança e adolescente, mas sim para o filho como “objeto/mercadoria” inserido na linha de produção da fábrica humana, que Chaplin tão bem descreveu em seu filme “Tempos Modernos”. Seres preparados para responder à demanda do mercado como produtos de qualidade envoltos numa bela embalagem. Sim, a imagem deve ser muito bem cuidada e, de preferência, com ajuda do marketing. O que poderá advir desse quadro? Seres humanos em série, feitos objetos para responder à demanda do Mercado, como escreveu Aldous Huxley, em seu profético livro “Admirável Mundo Novo”. Assistimos a filhos feitos objetos que, sem serem vistos, também não conseguem ver e muito menos respeitar o outro. Afinal, eles podem tudo para alcançar o dito “sucesso”.
Como consequência, os pequenos, sem viverem privações, frustrações e, muitas vezes, castrações, seguem firmes como ditadores da nova geração. Crianças e adolescentes cada vez mais mimados e egoístas por falta da presença de pais e mães em suas funções de autoridade simbólica. Os avós, que sempre tiveram importância na transmissão geracional familiar, perdem a cada dia essa função. Eles apenas sussurram baixinho com medo de serem repreendidos pelos filhos doutores: “meus filhos não conseguem ser pais”. No mais, para sobreviver como avós, seguem também mimando os netos sem questionar os ditames do novo mundo. Só lhes resta dar o bem. Não há espaço para uma palavra necessária quando o excesso se mostra. Avós sem voz na participação tão importante da transmissão dos valores para os netos. Perderam para a ciência, que a cada dia vem ocupando o lugar de referência nos jovens pais. A medicina exercendo cada vez mais seu poder através dos diagnósticos e pesquisas científicas sofisticadas sobre as novas patologias. É só observar o volume de farmácias e de medicamentos em escala estratosférica para tratar as “novas doenças”. Das falhas próprias do humano, sempre surge uma nova medicação para remediar esse pequeno ser, voltando à sua perfeição esperada e idealizada. A lista não para de crescer: alergias de toda ordem a inúmeros alimentos, TDAH, Transtornos Mentais de Desenvolvimento e por aí afora…
Eis que, de repente, o real eclode com força, através de um vírus poderoso que vem abalar toda a engrenagem posta no mundo. O que advém daí? Pais e filhos isolados dentro de casa, num encontro inusitado e inesperado. Pais que vão se deparar em breve com as dificuldades de seus filhos em viver privações, mas agora sem a alternativa de terceirizar os limites. Seus filhos serão obrigados, pela contingência da epidemia, a se submeterem, tanto pela sua sobrevivência, quanto de terceiros próximos, especialmente seus avós. Freud disse em seu magistral texto “ O Mal-Estar na Civilização” que para construirmos a civilização é necessária a renúncia parcial da satisfação pulsional. Será que o novo Coronavírus pode provocar, pelo encontro real dos pais com os filhos em seus espaços privados, a colocação dos limites, da Lei do interdito tão necessária ao pacto civilizatório? Afinal, depois de dias e meses juntos no privado de suas casas, será que os pais poderão ver, pela vivência real, a queda dos véus da projeção de seus ideais nos filhos? Mas que ideais? Não seria o de ter filhos sem falhas, os bem sucedidos? Ver as falhas no filho não será justamente a ruptura da alienação ditada pelo imperativo do Mercado que imprime a lógica do objeto mercadoria de sucesso? Não será por isso que assistimos à renúncia de toda uma geração de pais em autorizar-se a colocar limites, a exercer a função de Lei simbólica para os filhos? Portanto, será que essa pandemia poderá trazer alguma mudança nas relações entre pais e filhos pelo corte real da engrenagem, posta até então no mundo? São questões que só o tempo poderá responder sobre os efeitos dessa experiência inédita que fez a terra parar.