O escritor, ilustrador e cartunista Ziraldo. Crédito: Tiago Queiroz/Estadão
Era julho de 1969 e o mundo ainda estava atônito com a chegada do homem à Lua.Ziraldo levou a Fernando de Castro Ferro, editor na Expressão e Cultura, a proposta de transformar as tirinhas semanais que publicava na imprensa no livro Jeremias, o Bom. Saiu da editora com o aval de Ferro e uma encomenda: um livro para o público infantil, que precisaria ser entregue num prazo curtíssimo. Ziraldo topou e, em apenas dois dias, criou Flicts. A obra, que marcou a estreia do autor na literatura infantil, é também um divisor de águas na história do livro no Brasil. Neste mês, em comemoração aos 50 anos de publicação, Flicts chega às livrarias em uma edição que resgata a versão original, com 80 páginas.
Com um projeto gráfico arrojado para a época e que ainda hoje surpreende os leitores, Ziraldo transformou as cores em personagens. Produzido no contexto da ditadura militar, o livro conta a história de uma cor que não encontra o seu lugar no mundo e, de forma poética, abstrata e sensível, possibilita uma interpretação aberta, à luz das referências de cada leitor. Para uns, Ziraldo fala de liberdade e exílio; para outros, de preconceito e diversidade.
Em Flicts, Ziraldo imagem e palavras se interrelacionam para construir a narrativa. Uma linguagem não funciona sem a outra. Em uma época em que as imagens eram figurativas, o autor foi disruptivo. Se não bastasse, ele também subverteu o processo de produção habitual. Utilizando um livro impresso como base, fez as ilustrações com pedaços de papel colorido, tesoura, estilete e cola. A falta das ferramentas tradicionais não foi obstáculo, mas sim combustível para a criatividade, que se materializou em livro na gráfica, com o próprio Ziraldo conduzindo os técnicos. A obra saiu com capa dura e papel de alta qualidade.
Bia Reis
10 de julho de 2019 | 05h00
Era julho de 1969 e o mundo ainda estava atônito com a chegada do homem à Lua.Ziraldo levou a Fernando de Castro Ferro, editor na Expressão e Cultura, a proposta de transformar as tirinhas semanais que publicava na imprensa no livro Jeremias, o Bom. Saiu da editora com o aval de Ferro e uma encomenda: um livro para o público infantil, que precisaria ser entregue num prazo curtíssimo. Ziraldo topou e, em apenas dois dias, criou Flicts. A obra, que marcou a estreia do autor na literatura infantil, é também um divisor de águas na história do livro no Brasil. Neste mês, em comemoração aos 50 anos de publicação, Flicts chega às livrarias em uma edição que resgata a versão original, com 80 páginas.
Com um projeto gráfico arrojado para a época e que ainda hoje surpreende os leitores, Ziraldo transformou as cores em personagens. Produzido no contexto da ditadura militar, o livro conta a história de uma cor que não encontra o seu lugar no mundo e, de forma poética, abstrata e sensível, possibilita uma interpretação aberta, à luz das referências de cada leitor. Para uns, Ziraldo fala de liberdade e exílio; para outros, de preconceito e diversidade.
Em Flicts, Ziraldo imagem e palavras se interrelacionam para construir a narrativa. Uma linguagem não funciona sem a outra. Em uma época em que as imagens eram figurativas, o autor foi disruptivo. Se não bastasse, ele também subverteu o processo de produção habitual. Utilizando um livro impresso como base, fez as ilustrações com pedaços de papel colorido, tesoura, estilete e cola. A falta das ferramentas tradicionais não foi obstáculo, mas sim combustível para a criatividade, que se materializou em livro na gráfica, com o próprio Ziraldo conduzindo os técnicos. A obra saiu com capa dura e papel de alta qualidade.
“Quando eu terminei, percebi que tinha feito um livro fora dos padrões”, contou Ziraldo, em entrevista por WhatsApp, realizada com ajuda de sua sobrinha Adriana Lins, que organizou a edição comemorativa da Editora Melhoramentos. “Tem livro que permanece, tem livro que fica logo esquecido. Flicts foi um desses livros que permaneceram”, disse o autor, de 86 anos, que se recupera de um acidente vascular cerebral (AVC) sofrido no ano passado.
E não foi apenas o autor que percebeu de imediato a força de Flicts. Em nota publicada já na primeira edição e que é reproduzida nesta comemorativa, o editor Fernando de Castro Ferro escreveu: “Poucas vezes terá um autor conseguido entusiasmar um editor com a rapidez e a intensidade que fui ‘vítima’, quando Ziraldo acabou de me contar a história deFlicts. A sessão de leitura durou talvez meia hora. Não foram precisos quaisquer comentários. As palavras se tornaram inúteis. Ziraldo sabia o que havia criado e também sabia que eu tinha ‘sentido’ totalmente sua extraordinária obra”.
“Foi um impacto de crítica e de público. O lançamento eram festas que duravam o dia inteiro. Em três meses, os 10 mil exemplares se esgotaram”, conta Adriana. A repercussão na imprensa foi enorme e o aproximou do escritor Carlos Drummond de Andrade, que publicou o texto O Coração da Cor, no jornal Correio da Manhã, em que festejava a obra. “Que é Flicts? Não digo, não quero dizer. Cada um que trave contato pessoal com Flicts, e sinta o que eu sinto ao conhecê-la: um deslumbramento, um pasmo radiante, a felicidade de renascer diante do espetáculo das coisas em estado puro.” Flictstambém foi saudado na imprensa pelos jornalistas Rachel de Queiroz, Zózimo Barrozo do Amaral e Millôr Fernandes, entre outros.
Bilhete dado por Armstrong a Ziraldo e Daniela. Crédito: Reprodução/Melhoramentos
Poucos meses após dar o passo histórico na Lua, o astronauta americano Neil Armstrong veio para o Brasil, em um esforço de propaganda do governo americano. Ziraldo e a filha Daniela Thomas, então com 10 anos, se encontraram com ele no Copacabana Palace, no Rio. Ziraldo lhe presenteou com uma versão de Flicts traduzida para o inglês e impressa especialmente para a ocasião. Inesperadamente, Armstrong abriu o livro, o leu inteiro e disse: “Você está certo”. Em seguida, lhe deu um bilhete com a frase “A Lua é Flicts”, que passou a integrar todas as edições seguintes do livro, que já vendeu 500 mil cópias e foi traduzido para inglês, japonês e esperanto.
Flicts virou referência para gerações de designers e ilustradores. O autor de livros ilustrados Roger Mello, que trabalhou com Ziraldo no início da carreira, destaca a força narrativa da imagem em Flicts. “Não estamos falando somente de um livro que traz o diálogo do experimentalismo do design com a narrativa literária. A imagem em Flicts fala por si”, afirma Mello, vencedor na categoria ilustração do Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantil. “Flicts é um livro high-tech, sem deixar nunca de ser afável e meticuloso. Não é um livro sobre essa coisa ou aquela, é um livro sobre tudo, exclusão, refugiados, guerra, tecnologia, artes visuais, sobre o humano em toda e qualquer manifestação. Falamos com o gesto e os silêncios, Ziraldo sabe.”
Para o também autor de livros ilustrados e artista plástico Fernando Vilela, a obra de Ziraldo inaugurou no Brasil “um tipo de livro ilustrado experimental, em que texto e imagem são interdependentes na construção da narrativa”. “Em termos de linguagem,Flicts dialoga com as publicações do artista e autor italiano Bruno Munari, que, naquela década, expandiu o conceito do livro ilustrado. Por outro lado, conversa com alguns poemas visuais dos poetas concretos Augusto de Campos e Décio Pignatari. Porém, assumindo a cor como personagem e a afetividade na percepção e construção do real, Ziraldo transforma o espaço gráfico – a cada virada de página – num campo de operações poéticas, levando experiência ficcional a uma reflexão filosófica.”
A edição comemorativa de 50 anos resgata o livro idealizado por Ziraldo, com 80 páginas, conta Adriana, responsável pelo projeto gráfico. Segundo ela, a partir da segunda edição, o livro foi reduzido para 40 páginas – as páginas duplas se transformaram, de maneira geral, em simples – para ser adotado nas escolas e é assim que a maioria dos leitores conhece a obra. “Recuperamos a diagramação e a tipografia originais. É exatamente o projeto que o Ziraldo pensou e fez, mantendo as páginas brancas, os silêncios.”
Para essa matéria, o editor do Caderno 2, Ubiratan Brasil, sugeriu que publicássemos depoimentos de escritores e ilustradores sobre o cinquentenário de Flicts. Coloco abaixo cinco deles, incluindo o do Ziraldo:
— Ziraldo, escritor, ilustrador, cartunista e jornalista
“Eu sempre levo susto quando falam comigo nesse tom…. (sobre o fato de Flicts ser chamada de obra). Obra tem uma solenidade que eu acho que as coisas que eu fiz não atingem. Mas Flicts causou um impacto no universo ao meu redor… foi marcante. As pessoas ficaram impressionadas. Quando eu terminei, eu percebi que tinha feito um livro fora dos padrões. Flicts foi um desses livros que permaneceu. Tem livro que permanece, tem livro que fica logo esquecido. Eu me emocionei quando soube que era a minha sobrinha Adriana que ia fazer a versão dos 50 anos do Flicts. Fiquei feliz e tranquilo, tanto que nem passei recomendação alguma. Eu sempre quis que um designer desenhasse esse meu livro, pra ver como ele poderia ser resolvido… Ela preferiu ser fiel à versão original. E o pouco que entrou de novo, adorei.”
— Eva Furnari, escritora e ilustradora
“Ziraldo querido é o nosso menino maluquinho, ele nos provoca e nos encanta com seu traço firme e elegante. Muito antes de falarmos em diversidade cultural, religiosa ou racial, ele lançava seu genial Flicts falando do assunto simbolicamente. O Flicts comete mais uma ousadia incomum para a época, ilustra um livro infantil de forma abstrata, sem figuras. Sem dúvida um livro marcante na nossa literatura.” (Depoimento a Ubiratan Brasil)
— Pedro Bandeira, jornalista e escritor
“Meu primogênito nasceu pouco depois do lançamento do fantástico Flicts, estreando no mundo ainda sob o peso da bota militar que nos oprimia. Eu era um jornalista/redator que sofria essa opressão e certa noite voltei do trabalho de cara fechada, sentindo-me o mais infeliz dos seres humanos, ao mais uma vez ter uma matéria minha censurada pelo lápis vermelho do censor. Ao abrir a porta de casa, meu filho arregalou seus imensos olhos azuis ao ver-me tão abatido e perguntou: “Pai, o que aconteceu?”. Eu me detive, olhei para o exemplar do Flicts que meu menino tinha aberto à sua frente, soltei o ar sustido nos pulmões e percebi que ainda havia uma esperança, senti que a justiça um dia voltaria ao meu país, que uma nova cor de liberdade ainda cobriria minha terra, e respondi-lhe: “Não faz mal, meu filho. A Lua é Flicts…” (Depoimento a Ubiratan Brasil)
— Roger Mello, escritor e ilustrador
“Sempre digo que palavras e imagens são a mesma coisa. E a palavra é também uma imagem, assim como o design. Flicts é um livro divisor de águas, no Brasil, no mundo. Quando foi lançado, deixou todo mundo de boca aberta, por ser experimental até não poder mais, cheio de uma poesia tão brasileira e, ainda assim, universal. Experimental às vezes pode ser chato, não é? No caso do Flicts, nunca. Revejo as ilustrações agora mesmo e elas estão mais explosivas e poéticas que nunca. Daqui até a Lua, já que a lua é flicts. Escolher cores não é colorir, a cor é uma dor, como a rima quer. Sabemos disso em nosso País, uma vez que o Brasil não é somente o país da música e do futebol. É também o país da imagem narrativa. E a luz daqui favorece a cor saturada, doída, doce. Nada a ver com o estereótipo de cores tropicais enchendo a vista. Ziraldo foi meu mestre, e continua a ser. Flicts é um um livro high-tech, sem deixar nunca de ser afável e meticuloso. Não é um livro sobre essa coisa ou aquela, é um livro sobre tudo, exclusão, refugiados, guerra, tecnologia, artes visuais, sobre o humano em toda e qualquer manifestação. Falamos com o gesto e os silêncios, Ziraldo sabe. Não estamos falando somente de um livro que traz o diálogo do experimentalismo do design com a narrativa literária. A imagem em Flicts fala por si. Se as escalas pantone ou exercícios ópticos se transformam em puro fluxo narrativo, isso é porque Ziraldo dedica seu tempo a entregar o melhor de si para as crianças. Ler Flicts hoje é também como uma viagem no tempo. O ano de 1969 está cheio de viagens à Lua, e ilusões com a tecnologia. Não fizemos mais viagens tripuladas ao nosso satélite natural, mas nosso mundo não parece ter avançado tanto no estudo da Filosofia e nos Direitos Humanos, como Ziraldo queria.”
— Fernando Vilela, autor de livros ilustrador, artista plástico e curador
“Desde a primeira vez que o livro Flicts passou pela minha mão me enredei na sua equação poética que nunca se fechou. Talvez pela sua inventividade narrativa e gráfica,Flicts seja um livro que continua atual desde sua publicação, em 1969. Pode-se dizer que esta obra de Ziraldo inaugura no Brasil um tipo de livro ilustrado experimental, em que texto e imagem são interdependentes na construção narrativa. Em termos de linguagem,Flicts dialoga com as publicações do artista e autor italiano, Bruno Munari, que nesta década expande o conceito do livro ilustrado. Por outro lado, Flicts também conversa com alguns poemas visuais dos poetas concretos Augusto de Campos e Décio Pignatari. Porém, assumindo a cor como personagem e a afetividade na percepção e construção do real, Ziraldo transforma o espaço gráfico – a cada virada de página – num campo de operações poéticas, levando experiência ficcional a uma reflexão filosófica.”
Serviço
Flicts
Autor: Ziraldo
Editora: Melhoramentos
Preço: R$ 59