Comunidade tradicional às margens do Rio Doce, em Linhares, denuncia exclusão de famílias descendentes do escravo Atalino Leite e aponta irregularidades no processo de reconhecimento das famílias quilombolas. Nova liderança é escolhida para garantir justiça e reparação
Lideranças quilombolas denunciaram a exclusão de dezenas de descendentes de Atalino Leite, escravo considerado um herói ancestral, do processo de reconhecimento oficial do Quilombo de Povoação, no município de Linhares.
Para discutir o assunto, foi feita uma reunião, no último sábado (24), na comunidade tradicional localizada às margens do Rio Doce. Mais de 100 descendentes de Atalino Leite participaram. Segundo os organizadores, cerca de 80% dos verdadeiros descendentes ficaram de fora da certificação emitida pela Fundação Cultural Palmares em agosto de 2024. O motivo seria a atuação de uma liderança que não representa os troncos familiares históricos da região.
Jocilene Borges, 35, escolhida representante dos Atalinos, com o filho Samuel.
Os descendentes se organizaram e escolheram uma nova representante: Jocilene Borges, de 35 anos, que pertence à quarta geração de Atalino Leite. “Atalino era bisavô da minha mãe, Maria Candido Borges, 65. Sou representante da quarta geração dele. O Atalino Leite de Araújo é o fundador do Quilombo Degredo, o primeiro quilombo de Linhares reconhecido. A minha mãe é descendente de lá e veio morar em Povoação, assim como outras famílias descendentes do Atalino, que teve varios filhos”, relatou Jocilene.
Ela também explicou que a atual associação foi criada com base no tronco de Atalino, mas acabou sendo apropriada por pessoas que não têm ligação com o fundador. “O Quilombo de Povoação só foi reconhecido por causa dos Atalinos. Foram os troncos familiares que saíram do Quilombo do Degredo e migraram para Povoação com suas histórias de luta pela liberdade. Assim, o Quilombo de Povoação foi certificado em apenas sete meses. Se fosse fazer o estudo antropológico duraria muitos anos”,. observou.
RESISTÊNCIA
Considerado um símbolo de resistência, Atalino Leite teria fugido de uma fazenda em São Mateus e alcançado o litoral da região de Degredo em uma jangada. Exímio navegador, tornou-se figura importante ao resgatar a tripulação de um navio grego que encalhou e pegou fogo nas proximidades da Lagoa do Junco. O local ficou conhecido como Degredo, onde seus descendentes vivem até hoje.

De acordo com os moradores, os verdadeiros quilombolas de Povoação pertencem ao tronco de Atalino e ocupam as comunidades de Cananéia, Brejo Grande, Zacarias, Lagoa Monsarás e Lagoa da Viúva. “A atual liderança montou uma associação, que também fiz parte, mas acabei me afastando devido à minha gravidez. Ele, como atual presidente, escondeu informações da comunidade e não reconheceu os verdadeiros do tronco familiar de Atalino, deixando cerca de 180 remanescentes de fora, que são de fato quilombolas”, denunciou Jocilene. “Ele não representa os quilombolas do tronco dos Atalinos.”
O encontro de sábado foi organizado por Rosenilda Monteiro Amaral, que reforçou as críticas à condução do processo. “Fomos enganados pela atual liderança, que deixou várias famílias de fora por motivos pessoais. Por isso, nós, remanescentes do Quilombo de Atalino Leite, criamos uma nova representação onde 100% são de fato descendentes do nosso ancestral”, disse Rosenilda.
Segundo ela, parte da comunidade foi impedida de acessar direitos fundamentais por conta da exclusão. “Nós levamos essas informações para garantir que quem ficou de fora por manipulação possa ser reconhecido. Esses direitos estão sendo violados”, pontuou.
Durante a reunião, foram debatidas pautas como justiça histórica, acesso a políticas públicas específicas, valorização da identidade quilombola e participação nos debates sobre compensações ambientais. A ausência de reconhecimento oficial tem impedido famílias vulneráveis de ingressar em programas sociais do governo federal, como o Bolsa Família, e em políticas estaduais voltadas para comunidades tradicionais.
“Sem esse reconhecimento, somos tratados como população rural comum, o que apaga nossa história e nega nossos direitos garantidos pela Constituição Federal e convenções internacionais, como a 169 da OIT”, alertou Rosenilda.
Quilombolas reconhecidos têm acesso ao chamado Anexo 3 da Repactuação, que beneficia descendentes atingidos pelo desastre de Mariana. Segundo os presentes, os remanescentes legítimos do tronco de Atalino foram deixados de fora da lista de beneficiários.
A expectativa agora é que todas as informações reunidas – incluindo atas, fotos, vídeos e documentos históricos – sejam encaminhadas ao Ministério Público Federal, por meio da procuradora Gabriela Góes, que acompanha casos relacionados a povos e comunidades tradicionais no Espírito Santo. O assunto também será levado ao conhecimento da Comissão de Proteção ao Meio Ambiente da Assembleia Legislativa, presidida pelo deputado Fabrício Gandini (PSD).
O encontro teve clima de união e escuta ativa. “O que mais me marcou foi ver toda a família reunida, contando a história do verdadeiro quilombola Atalino Leite. Descobrimos que muita gente ficou de fora do reconhecimento oficial. A suposta liderança atual sequer faz parte dos remanescentes”, desabafou Rosenilda.
Jocilene Borges será a responsável por representar a nova liderança junto à Fundação Palmares e ao Ministério da Igualdade Racial. “Eu fui escolhida pelos Atalinos como a nova liderança que vai buscar os direitos deles. A certificação já havia sido pedida no meu nome. Agora, caberá à procuradora Gabriela tomar essa posição, que repassará ao Ministério de Igualdade Racial. A minha expectativa é de que as pessoas que ficaram de fora sejam reconhecidas e recebam os seus direitos”, afirmou Jocilene.
por Gleberson Nascimento / Foto Arquivo quilombo